A PRÁTICA ALÉM DA TEORIA
INTRODUÇÃO.
Muito se tem falado que não há mais grandes pensadores, nem grandes estadistas, nem criadores e muito menos inventores, ou simplesmente homens inteligentes, que desenvolvam grandes e novas teorias, ou criem novas práticas, formulem leis em relação à física, ou a química, medicina, ou em relação às ciências ou as ciências humanas, e quando nos pomos a pensar a respeito, parece que esses homens ficaram nos séculos passados. É como se toda ação tivesse sido desenvolvida nos séculos anteriores e de lá para cá só ficaram as teorias que os grandes homens do passado deixaram.
Em relação a tudo isso, muitos de nós podemos dizer: “Mas nos séculos passados havia necessidades que obrigavam aqueles homens a buscarem e descobrirem novas práticas, pois o mundo como conhecemos hoje, não existia naqueles séculos. Foram esses grandes homens do passado que ajudaram a construí-lo dessa forma, com as suas inteligências, seus inventos, com as suas criações e com as suas postulações.”
Podemos concordar ou não com tudo isso, mas uma coisa é certa: ainda hoje há necessidades que buscamos suprir, não com novos inventos ou criações, mas com práticas baseadas nas teorias resultantes das práticas desenvolvidas pelos grandes homens do passado. E para qualquer criação ou invenção do presente, devemos citar e nos basearmos nas teorias deixadas, e todos os trabalhos têm de ser baseados nessas teorias como se o atual trabalho fosse, nada mais, nada menos, que um ramo ou uma extensão de tudo o que antes, de um modo geral, foi colocado à disposição da humanidade.
Ao pensar nessa fórmula de com é desenvolvido o trabalho nos nossos cotidianos, podemos ver nitidamente não há criação de novos saberes, mas sim a justificativa e/ou a validação, ou ainda a ratificação de saberes que já existem. Em outras palavras, quando desenvolvemos algum trabalho é como se buscássemos testemunhas para justificar ou ratificar o que estamos postulando. É como se precisássemos do aval deles em tudo para que o nosso trabalho seja reconhecido e aceito.
Eu sei que não é isso, mas se pararmos pra pensar, é essa a impressão que vamos ter.
E nesse sentido vamos entrar em outro pensamento bem semelhante aos que foram discutidos até aqui: o pensamento da teoria e da prática. Os debates entre teoria e prática são infindáveis. Os defensores da prática alegam que a teoria é pouco efetiva, uma vez que sua aplicação é sujeita a condições específicas e particulares. Por outro lado, aqueles que defendem a teoria alegam que os conceitos são as verdadeiras fontes do saber e do conhecimento. Muitos escritores as consideram como duas faces da mesma moeda, e chegamos a crer que não existe uma prática sem uma teoria que a defina. Isso aprendemos nas nossas casas de ensino, mas também muitos escritores defendem a tese de que o professor tem como missão principal não o ensinar uma teoria ou uma prática ou as duas juntas, mas ensinar o aluno a pensar, e nesse sentido os professores encontrados ao longo da nossa trajetória acadêmica (não todos), na grande maioria das oportunidades, nos desautorizavam a tentar de uma forma diferente da teoria ou da prática já existente, e acabavam, com isso, nos tornando reféns da maneira pré existente. Mas ao nos depararmos com o outro e suas necessidades, muitas vezes não encontramos nada escrito a respeito daquelas necessidades e temos que criar uma prática, não a partir da teoria, mas sim a partir da necessidade do sujeito, e é isso que pretendo relatar em relação a minha prática enquanto professor de autistas.
Caso:
Em meu primeiro dia de aula, encontrei um garotinho de aproximadamente 9 anos, grande para a sua idade, juntamente com a mãe. Era também o primeiro dia dele naquele horário, pois ele já ficava na parte da manhã com uma outra professora, também psicóloga. Pensei: mudança de horário, de professor, implica mudança de rotina e, conseqüentemente, crise para uma criança autista. A direção da escola, junto com coordenadoria, decidiu deixar a mãe na sala de aula para que a criança não sentisse muito a mudança na rotina. Percebi algumas feridas e marcas no rosto e braços do menino. Perguntei para mãe o que era e a mãe me explicou que ele não suportava o toque de pessoas estranhas e logo que era tocado, ele se beliscava até que o local tocado sangrasse e que ele tinha marcas por todo o corpo. No rosto era quando alguém o beijava.
Tentei interagir, mas ele parecia não me enxergar, porém aos poucos foi me notando e me aceitando. Eu disse à mãe que ela poderia sair, fiquei com ele e correu tudo bem naquele dia. No dia seguinte a mãe estava na sala quando cheguei, e parecia que fazia tudo para que ele não me aceitasse, chegou até tirar um celular e dar para o menino. Ele brincou um pouco com o aparelho e devolveu para mãe, veio perto de mim para ver o que eu estava fazendo, e a mãe se retirou.
No terceiro dia a mãe estava tentando fazer com ele se levantasse do chão quando cheguei, então, derramei uma caixa de brinquedos e me deitei perto dos brinquedos. Ele olhou e logo se levantou, veio e deitou ao meu lado começando a brincar. A mãe se retirou.
Nos dias que se sucederam a mãe não entrou mais na sala e demos continuidade no trabalho, ainda de aproximação. Ele já não se beliscava quando eu o tocava, porém dava muitas pancadas na própria cabeça e emitia um som bem agudo. Aos poucos, consegui com que ele parasse de se estapear. Também ficava bastante curioso quando eu o imitava emitindo o mesmo som que ele fazia, ele olhava para mim e ria (ele não falava).
Depois de algum tempo com ele, comecei as tentativas de integrá-lo com os outros alunos da escola, também com necessidades especiais. Comecei a levá-lo para participar das aulas, e logo ele começou a participar, querendo fazer as tarefas destinadas aos outros alunos, construindo bloquinhos de anotação, perfurando com a máquina, e passando o espiral pelos furos. Além disso, começamos a escrever com as letras de plástico o nome dele e o meu, e todos os dias quando chegávamos na sala ele escrevia os dois nomes. Nas demais tarefas ele desenhava uma figura grande e uma menor e tentava desenhar óculos na figura maior (figuras essas que identificamos como sendo nós dois), depois ele pintava essas figuras e fazia tudo isso sozinho (no principio queria me usar como ferramenta querendo que eu movimentasse a mão dele para a pintura).
Após três semestres juntos todos notavam a evolução da criança, inclusive participando de atividades externas, saindo para lanchonetes, supermercados e andando pelas ruas.
Considerações finais:
Tudo que foi realizado com o aluno saiu das nossas interações, pois nunca li nada a respeito de como trabalhar com autismo, embora tivesse o conhecimento de como se dá o autismo e cheguei até a participar de um curso na AMA (Associação de Amigos do Autista). Na oportunidade pude falar da evolução da criança, mas tudo que eu relatava a professora não acreditava, pois dizia que não se conseguia evolução daquela forma que eu estava descrevendo nem nas escolas deles, que seguiam o método Montessori.
Aqui volto a falar da prática verso teoria, pois naquela instituição o único saber autorizado é o saber das teorias institucionalizadas com pouco ou nenhum espaço para novas tentativas, como foi feito, porém se ser apoiado em saberes pré-existentes.
Não quero dizer que devemos desprezar todas as teorias já existentes, ou ignorar autores já consagrados e que já tiveram seus trabalhos reconhecidos pela sociedade, quero sim dizer que é possível criar novos saberes através de pesquisas desenvolvidas a partir da própria prática, descobrindo assim novas teorias que não teriam como “testemunhas” os autores do passado. Seria mais ou menos como no principio: a teoria sendo escrita a partir da prática.
Por: Osvaldo Antunes de Campos